sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Instrumentos de paz

Três anos depois do desastrado referendo que confundiu o povo brasileiro com a falsa idéia de que votar sim ao desarmamento significaria desarmar o cidadão de bem, a criminalidade não reduziu e são cada vez maiores os números de homicídios com armas de fogo, que circulam livremente pelas comunidades, muito embora poucos tenham autorização para o porte. Armando-se, a população tem a falsa sensação de segurança e resgata práticas medievais de vingança privada, incompatíveis com o Estado de Direito. Enquanto isso, Alagoas, por mês, perde mais vidas humanas do que a Faixa de Gaza. Diante dessa situação incontrolável, o governo federal lança nova campanha voltada para o desarmamento, com o intuito de incentivar a entrega voluntária das armas. Essa é uma das frentes do combate à criminalidade violenta em todo o País, que não pode ser levada adiante sem uma reestruturação material e pessoal das polícias e sem uma mudança de paradigma nas políticas públicas de combate à violência. A segurança pública não pode se tornar uma questão privada e individualizada, alheia à atuação do Estado. Não é através do incentivo à própria violência, sobretudo com o uso de armas de fogo, que será resgatada a paz e a tranqüilidade em bairros e comunidades. Ao contrário, é preciso buscar alternativas que ultrapassem a cultura da repressão e da violência, norteadoras da maior parte das ações do Estado, e incentivar o real engajamento da sociedade civil, em parceria com o Poder Público, na revalorização da vida humana. Além disso, o Estado precisa resgatar a confiança e o respeito perdidos ao longo dos anos em que o povo brasileiro sentiu-se órfão e entregue à própria sorte, não apenas pela omissão estatal, mas também pelas circunstâncias em períodos em que o próprio Estado passou a representar uma ameaça à liberdade e à dignidade humana. Por outro lado, não se pode confundir o incentivo ao protagonismo do povo no processo de redução da violência e da criminalidade com práticas violentas capazes de embrutecer os indivíduos e criar uma atmosfera de pânico que em nada contribui para a paz. Ainda que as armas de fogo sejam instrumentos sedutores para muitos, é certamente por outras vias que a situação atual será revertida. Ao invés de armas de fogo, precisamos de instrumentos de paz. Esse é o nosso maior desafio.

Publicado na Gazeta de Alagoas, em 05/09/2008

http://gazetaweb.globo.com/v2/gazetadealagoas/texto_completo.php?cod=133964&ass=37&data=2008-09-05

12 comentários:

Mário disse...

É falsa a idéia de que proibindo a fabricação e o porte de armas de fogo cairão o número de crimes violentos. Prova disso é que hoje há uma dificuldade enorme para que uma pessoa adquira uma arma dentro do que preconiza a lei. Já para a bandidagem, não tem coisa mais fácil do que comprar uma arma. À época do referendo, a Jamaica liderava o ranking dos países em número de homicídios, e lá as armas de fogo são proibidas desde a década de 70! O índice de crimes violentos subiu no Reino Unido após a proibição do porte e da posse de armas de fogo. Os EUA são o país com a população civil mais armada do mundo e o número de crimes violentos vem declinando. Na Suíça, cada cidadão, após o treinamento militar, recebe do governo um fuzil e munição para guardar em casa, e as taxas de homicídio por 100.000 habitantes são ínfimas. O direito à legítima defesa é direito natural, pois o estado não é onipresente nem onipotente para garantir a segurança de todo e qualquer cidadão em seu território, acreditar que ele pode garantir a segurança de cada um, principalmente em zonas rurais e nos ermos desse imenso Brasil é ilusão. Segue texto do filósofo iluminista Helvétius, do século XVIII, que já expôs essa situação naquela época e de forma muito melhor do que a que faço aqui, sua reflexão continua atual:

"Vejo portanto que o castigo e a recompensa são os dois únicos liames pelos quais puderam manter o interesse particular unido ao interesse geral; e daí concluo que as leis, feitas para a felicidade de todos, NÃO SERIAM OBSERVADAS POR NINGUÉM, SE OS MAGISTRADOS NÃO ESTIVESSEM ARMADOS DO PODER NECESSÁRIO PARA GARANTIR SUA EXECUÇÃO. Sem esse poder, as leis, violadas pelo maior número,seriam, COM JUSTIÇA, infringidas por cada particular, visto que, tendo as leis APENAS A UTILIDADE PÚBLICA COMO FUNDAMENTO, tão logo essas leis se tornem inúteis, COM UMA INFRAÇÃO GERAL, então são nulas e deixam de ser leis; cada um retoma os seus primeiros direitos; cada um só leva em conta o seu interesse particular, que o impede com razão, de observar as leis que se tornariam prejudiciais àquele que seria o seu único observador. E é por isso que, se, para a segurança das grandes estradas, fosse proibido por aí passar com armas e se, POR FALTA DE GUARDA, os grandes caminhos estivessem infestados de ladrões, essa lei não teria o seu objetivo cumprido; afirmo, por conseguinte, que UM HOMEM PODERIA NÃO SOMENTE POR AÍ VIAJAR ARMADO E VIOLAR ESSA CONVENÇÃO OU LEI, SEM INJUSTIÇA, MAS QUE TAMBÉM NÃO PODERIA MESMO OBSERVÁ-LA SEM LOUCURA."

A situação que se estabeleceu (já estabelecida, independente de proibição total do porte, pois na prática esse já foi vetado ao cidadão comum cumpridor das leis)no Brasil é esta mesma que vai descrita acima. No meio de um monte de bandidos armados, os quais obviamente não têm arma registrada e nem o tem permitido seu porte, fica o cidadão não-criminoso obrigado, por força de lei, a ir, caladinho, ao matadouro. Certas coisas são muito belas no papel. Só no papel.

Bruno Lamenha disse...

Quem é o "cidadão de bem"?..

Bruno Lamenha disse...

eu agora tenho blog, ein: http://algunspandarecos.blogspot.com

Mário disse...

"a falsa idéia de que votar sim ao desarmamento significaria desarmar o cidadão de bem"

Bem, salvo engano, a pergunta no referendo do desarmamento era:

"O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?"

Então como o cidadão de bem poderia adquirir uma arma se o comércio tivesse sido proibido? Ia adquiri-la por meios ilícitos, como fazem os bandidos que não ligam pra lei?

Mário disse...

Bruno, penso que Elaine valeu-se do termo "cidadão de bem" para referir-se a todo aquele que não vive do crime e distingui-lo daquele que faz da prática criminosa o seu meio de vida, enfim, do cidadão que é contumaz na prática delituosa. Há pessoas que por princípio, convicção pessoal se dispõem a cumprir as leis, o que não quer dizer que não possam cometer delitos. E há pessoas que não se importam em infringir regras e normas, tornando-se criminosos profissionais. Um "cidadão de bem" que adquire uma arma não o faz na intenção de assaltar traseuntes em via pública ou um banco. Bem diferente dos Beira-Mar e congêneres quando adquirem um novo "brinquedo".

Elaine Pimentel disse...

Esse termo "cidadão de bem" não é meu, mas do senso comum. Faço uso desse termo como uma referência a uma expressão recorrente no momento em que a questão do desarmamento estava em destaque em virtude do referendo. Penso que se trata de um termo equivocado, que vai na mesma linha da expressão "mulher honesta", presente no nosso Código Penal há alguns anos atrás. Quanto às armas de fogo, continuo a afirmar que não precisamos dela. Aliás,penso que há, aí, uma visão equivocada do que seja "estado de natureza". Não podemos, em tempos de complexidade como o nosso, fazer apologia à barbárie que um dia (historicamente não pontuável)a humanidade viveu quando em estado de natureza. Aliás, o esforço de teóricos modernos como Hobbes, Locke e Rousseau foi justamente no sentido de demonstrar como a vingaça privada não é solução para a "guerra de todos contra todos", que marca a nossa condição humana mais precária. Daí se justifica a criação deliberada do Estado. Propor a vingança privada significa negar o Estado e a real necessidade de fazê-lo presente a atuante. É uma questão de perspectiva.

Bruno Lamenha disse...

Eu acho que não, viu, Mário? Acho que a Elaine, pelo que conheço do trabalho dela, cometeu um "pecadinho" ao utilizar o termo "cidadão de bem", numa tentativa de ser bem compreendida, já que se tratava de um artigo divulgado num veículo de comunicação de massa. Esses maniqueísmos do tipo cidadãos de bem x bandidos (cidadãos do mal?) são sempre muito vazios e ajudam bem pouco no esforço de pensar a complexidade da natureza humana. Que dirá então sobre o grave problema da criminalidade em nossos dias?

A noção de "cidadão de bem", a meu ver, é uma noção extremamente classista. Quando falam em "cidadão de bem", só lembro de uma manifestação pública do jornalista Alexandre Garcia atribuindo o vandalismo patrocinado por passageiros nos aeroportos brasileiros durante a crise aérea como uma "ira justa dos cidadãos de bem, que pagam seus impostos". É interessante notar como o discurso muda, por exemplo, diante de uma invasão de terra improdutiva patrocinada pelos movimentos do campo. Onde estão os cidadãos de bem nessa seara?

Também é a idéia de "cidadão de bem" que motiva a baixa reprovabilidade de condutas delitivas graves como a dilapidação do patrimônio público em face do vilipêndio do patrimônio privado. Quem dilapida o patrimônio público? Os homens instruídos e respeitáveis, cidadãos de bem que cometeram um pequeno deslize.
Basta ver, por exemplo, a recente decisão do STF sobre a questão do uso de algemas nas operações policiais. Ora, os cidadãos de bem, algemados? Nunca!

O cidadão de bem, na verdade, é o camarada da classe média/alta, revoltado com alta carga tributária do país e defensor da pena de morte e ferrenho crítico da corrupção. No entanto, é o mesmo cara que não titubeia ao pagar 50 reais ao guarda de trânsito para se ver livre da multa ou que não se incomoda de pagar um aborto clandestino para a filha adolescente, apesar de ser fervoroso católico e discursar contra o aborto e em defesa da vida.

Sinceramente, gente? Eu tenho medo do cidadão de bem!

Mário disse...

Elaine, não estou me colocando a favor da vingança privada, mas tão-somente defendendo o direito de possuir uma arma de fogo. Eu não tenho nenhuma, nunca fiz curso de tiro e nunca atirei em ninguém. A questão não é de vingança ou revide, mas do direito à legítima defesa. Como exemplo, cito um caso terrível e concreto acontecido em Recife há alguns anos. Três estudantes universitárias foram sequestradas quando saíam da aula. O sequestrador as conduziu para um lugar ermo. Estuprou duas das jovens. A terceira conseguiu pegar a arma do criminoso e o abateu com um tiro. O sequestrador acabou morrendo, era um ex-presidiário que tinha sido liberado pela justiça fazia poucos dias. Não diria que o caso possa ser tido como uma "vingança privada", mas aquele disparo poupou aquelas jovens das sevícias do bandido e, provavelmente, da morte. Mas o mais incrível dessa história toda - que talvez vc se recorde, pois o caso teve bastante repercussão - foi o fato do delegado ter encarcerado a garota, numa demonstração de insensibilidade, falta de bom senso e apego à letra da lei. O discurso elaborado e "científico" que aparentemente opõe uma visão "medieval" - e portanto bárbara - a outra "moderna" e "civilizada" que enxerga além do "senso comum", parece esquecer-se de que o homem medieval é o mesmo homem de hoje. Marcado por um "cronocentrismo", ou seja, a crença de que somos mais sábios, ponderados e humanos do que aqueles que viveram em outros tempos, tal discurso fecha os olhos para injustiças - conceito que existe antes de existir o Direito - como esta cometida por um agente do estado que cumpriu a lei conforme a prerrogativa que essa mesma lei lhe faculta. Não se trata da guerra de todos contra todos, mas do direito inalienável (que não precisa nem estar escrito em código algum) que todos têm de defender a própria vida e daqueles a quem amam.

Mário disse...

É óbvio, bruno, que "cidadão de bem" não se trata de um conceito ou categoria filosófica. Mas você faz uma generalização marcada por um marxismo simplista que até destoa da forma clara como vc expressa a suas idéias. Mentalidade classista? Não creio.Pergunte a um pobre se ele sabe o que é um "cidadão de bem" saberá te responder. Esse é um termo utilizado nas ruas, no mundo real, não nos idéias, e que faz referência a pessoas de boa reputação, só isso. Não pus em questão que se trata de um termo do senso comum. Ele tem, de fato, um significado. Não estou querendo transforma-lo em um termo técnico-filosófico-científico. Como disse no comentário anterior, não se pode negar a realidade que há pessoas que não têm a menor intenção de respeitar a lei ou mesmo se conduzir mediante qualquer código ético ou moral. E isso, meu caro, é algo que não escolhe classe social. "Cidadão do mal" x "do bem"? Não, amigo, não estou reduzindo a discussão a um puro dilema maniqueísta, mas chamo a atenção para certos relativismos morais resultantes de premissas materialistas ou "científicas". Não cabe comparar a revolta de passageiros movidos pela irritação depois de aguentarem horas e horas de descaso e desrespeito com invasões de terras pensadas e orquestradas por movimentos políticos travestidos de movimentos sociais que matam, roubam, depredam, extorquem e saqueiam. Invasões de terra ou do congresso nacional (inclusive patrocinadas com dinheiro público) são ações planejadas, situação distinta daquela dos passageiros retidos em aeroportos. Distinta não apenas por suas particularidades, mas também pelos prejuízos causados. Ninguém invadiu aeroporto, ninguém queimou nenhum avião, ninguém destruiu guichês de companhias aéreas, só o que houve foram gritos,palavras de ordem e troca de empurrões. Muito diferente de uma passeata no RS onde um policial foi degolado, ou do saque recente de um caminhão carregado de margarina (margarina!), ou do cerco ameaçador a supermercados da capital, ou da destruição de décadas de pesquisa quando da invasão de laboratórios. Não, meu caro, não faço distinção de classe nem classifico algo como "bom"ou "mau" levando em conta se quem pratica o ato é pobre ou "burguês". Atenho-me ao ato praticado, ao contexto e às consequências. Sua comparação foi imprópria.

Bruno Lamenha disse...

Caro Mário, apropriado lhe parece denominar "impróprios" e "simplistas" os pontos de vista que destoam do esposado por você?

E o que lhe parece "científico"? Discutir a materialidade e a dinâmica social, a organização dos movimentos sociais e a complexa temática da criminalidade a partir de exemplos isolados provavelmente extraídos das "profundas" publicações de massa que dominam os meios de comunicação brasileiros?

"Pergunte a um pobre se ele sabe o que é um "cidadão de bem" saberá te responder. Esse é um termo utilizado nas ruas, no mundo real, não nos idéias, e que faz referência a pessoas de boa reputação, só isso". Acontece, Mário, que as idéias dominantes na sociedade não brotam do nada, atemporal e ahistoricamente. E para além do "marxismo simplista", não vou reduzir esse debate à dominação econômica. As idéias dominantes são as idéias de um grupo dominante, ou seja, do grupo capaz de supor o consenso social através do domínio dos aparatos de produção simbólica (cultural). Isso explica um pouco porque certas representações sociais como a figura do "cidadão de bem" surgem no seio de setores minoritários da sociedade brasileira, mas não se referenciam ou são exclusivas de um única classe social. E atenção: não estou falando em uma minoria pensante que controla, maldosamente, uma maioria utilizada como massa de manobra. Estou apenas afirmando que a verdade (e igualmente, as idéias dominantes), na sociedade, se supõe à luz das relações de poder, especialmente da dominação dos aparelhos de construção simbólica (como a educação, por exemplo. E não falo apenas da educação formal, para que não surja aqui o argumento do gritante analfabetismo da população brasileira). Esses processos não são oriundos da maldade dos homens, mas da própria necessidade de articulação e ordem social. O que não quer dizer que as "verdades sociais" não devam ser desconstruídas e, sendo certo também, que a sociedade está povoada, pois o homem é um ser pensante, de inúmeras manifestações destoantes das idéias dominantes.

Voltando à idéia do cidadão de bem, mais que classista, penso que ela consubstancie a negação da alteridade, característica tão evidente em nosso tempo, que é marcado por valores sociais como o individualismo e imediatismo (está na ordem do dia do ideário axiológico dominante, portanto). Cria-se um abismo entre nós, os "homens de boa reputação" e os outros, capazes das maiores atrocidades. Esquecemos, no entanto, que a insuportável verdade é que, homens que somos, também somos inteiramente capazes de praticar muitas das atrocidades praticadas pelos bandidos (ou, não-cidadãos de bem, para não chamá-los de 'cidadãos do mal'). O "cidadão de bem" é o nosso ópio, o nosso devaneio até infantil de negar a nossa condição humana e esconder, embaixo do tapete, a destrutividade que subsiste dentro de cada um de nós.

Mário disse...

Prezado Bruno, creio que expus em meu comentário o porquê de ter classificado a tua argumentação de "marxismo simplista". Ao fazê-lo não quis, de forma alguma, depreciar o que você colocou fazendo uso do emprego de adjetivos de forma solta e sem relação com nenhum fato ou argumento por mim apresentado, simplesmente porque seu ponto de vista difere do meu. Repare que o que quis demonstrar foi que, por conta do viés de "luta de classes" que deste quando da comparação da indignação dos "cidadãos de bem" retidos em aeroportos - considerada justa e compreensível por um jornalista- com a ausência dessa mesma anuência diante das invasões de terras "improdutivas". Objetei que são exemplos distintos, e que por isso não podem ser colocados como se tratando da mesma situação. O fato de você coloca-los como situações que podem ser comparadas a fim de demonstrar que o "cidadão de bem" age mediante o emprego de "dois pesos e duas medidas", corroborando assim a tese de que o conceito é "classista", ou seja, ligado aos interesses um grupo dominante, me levou à conclusão de que essa comparação imprópria (porquanto entre situações diversas)só poderia ter sido feita mediante uma análise contaminada por um viés ideológico. Confira o meu comentário anterior e verás que não fiz uso do adjetivo "simplista" de forma leviana, nem com o intuito de ofendê-lo ou de depreciar sua inteligência ou capacidade, apenas apontei onde reside a inadequação na sua considerações.

Você pergunta se considero "científico" discutir situações complexas baseado em "exemplos isolados" e de "profundas publicações de massa", como se o modo como coloquei a questão desse a entender tal coisa. Bem, não considero que o espaço exíguo da sessão de comentários de um blog seja o adequado para discutir assunto complexo algum. Além disso, acaso você constatou em algum dos meu comentários alguma reprodução de conclusão "científica" de algum veículo de mídia? Tudo o que fiz, amigo, foi reproduzir fatos, acontecimentos cujo conhecimento é público. E é com base em fatos que construo meu ponto de vista. Minha formação não é nas assim denominadas "ciências humanas", mas sei que qualquer teoria científica se constrói com base em evidências e que basta que um fato para colocar por terra uma bela teoria.
Sabe, não estou aqui participando dessa discussão porque quero impor meu ponto de vista, mas porque quero confronta-lo com outros diferentes dos meus. Mas quando encontro algo que considero contraditório, falho ou pouco claro, exponho, destaco, chamo a atenção. Creio não ser justa sua colocação que me baseio em publicações de massa para construir uma análise "científica", primeiro porque não estou fazendo ciência aqui, segundo porque tomar-me por um "cidadão de bem reprodutor das idéias da mídia" é tirar conclusões apressadas.

Agora, deixemos uma coisa clara. Não considero marxismo como ciência, ou, como fazem muitos de seus adeptos, "A" ciência. E aqui entramos numa outra discussão. Tenho grande preocupação quando as ciências humanas começam a valer-se de teorias de outras áreas do conhecimento para produzir novas abordagens e deduções. E considero que Marx, trabalhando numa época marcada pelo cientificismo e pelo otimismo em relação às ciências, terminou criando uma obra de filosofia com uma roupagem de ciência, cuja pretensão era explicar as sociedades reduzindo toda a problemática humana à questão econômica. Isso sem falar em outra pretensão injustificável, a de conhecer o "fim da história". Teria a profecia marxista sido influenciada por um dos pressupostos de uma boa teoria ciêntífica que é justamente a capacidade de fazer previsões a respeito de determinados fenômenos a partir de leis? Para mim parece óbvio essa "forçada de barra" por parte de Marx. Mas até que ponto ele foi honesto em sua pesquisa? O fato de ter omitido determinadas estatísticas e dados que iam ao encontro do que ele pensava quando da análise dos Blue Books do parlamento britânico, coloca em cheque o pretenso rigor da pesquisa de Marx. Um episódio interessante da época é a referência de Marx ao discurso de Gladstone. Marx distorceu, falsificou o discurso com o intuito de faze-lo entrar em conformidade com as suas teses, segue:

"Eu deveria encarar quase com apreensão e com pesar esse aumento inebriante da riqueza e do poder se achasse que tal aumento se limitou à classe que está em condições mais favoráveis... a situação geral dos trabalhadores dos trabalhadores britânicos, como temos a felicidade de saber, melhorou muito ao longo dos últimos 20 anos num grau que, como sabemos, é extraordinário, e que quase devemos declarar como sendo sem paralelo na história de qualquer país em qualquer época".

Um ano depois, no discurso da Associação Internacional de Trabalhadores, Marx, citou o discurso de Gladstone:

"Esse aumento inebriante da riqueza e do poder se limita inteiramente às classes proprietárias".

O pior é que Marx publicou essa inversão no Capital! Não foi engano, foi pura desonestidade intelectual.

Como dar crédito a um "cientista" que procede desse modo?

Mas por muito tempo, e ainda hoje,tem-se o marxismo na cota de "ciência". O próprio Marx, reconhecendo a importância da Teoria da Evolução das Espécies para a sua obra, enviou um exemplar com dedicatória à Darwin, que não entendeu o paralelo. E o que dizer do discurso de Engels no funeral de Marx, comparando-o a Darwin e afirmando que do mesmo modo que Darwin descobriu as leis da evolução dos organismos, Marx o fez em relação a evolução das sociedades humanas. As vezes, quando estou entediado ou triste, pego o opúsculo de Engels "O Papel do Trabalho na Transformção do Macaco em Homem" para dar umas boas gargalhadas.

No gostoso livro dos físicos Alan Sokal e Jean Bricmont (Imposturas Intelectuais: o abuso das ciências pelos filósofos pós-modernos) há uma citação que ilustra a que eu quero fazer referência:

"A queda do comunismo pode ser vista como sinal de que o pensamento moderno - baseado na premissa de que o mundo é objetivamente reconhecível, e que o conhecimento assim obtido pode ser absolutamente generalizado - chegou a uma crise final"

Vaclav Havel (ex-presidente Tcheco)

Sokal e Bricmont então perguntam:

"É o caso de perguntar por que um renomado pensador como Havel é incapaz de estabelecer distinção elementar entre ciência e a injustificada pretensão dos regimes comunistas de possuir uma teoria "científica" da história humana".

Os valores, crenças e hábitos de uma sociedade são reprodução dos valores da classe dominante? Mas o ser humano pensante pode "desconstruí-los"? E de preferência erigir sobre os escombros dos valores "burgueses" valores outros derivados da clarividência trazida pelo materialismo dialético? Meu jovem, isso tudo já foi feito! Muitos acreditaram nisso com consequências desastrosas para quem viveu sob o socialismo real.

Sei bem a respeito das mazelas que habitam o coração humano, da loucura humana, das paixões irracionais que não fazem distinção de classe ou cultura (leia meu comentário de novo, por favor). Agora não reduzo a dimensão humana a um puro jogo econômico, ao puro interesse de classe, ao embate entre as classes, nem fecho os olhos para a realidade única de cada indivíduo. Não somos uma sociedade de cupins, como as vezes quer passar a sociobiologia de Edward Wilson (um dessas correntes loucas que procuram extrapolar as conclusões de análises do mundo natural para dentro das sociedades humanas).

O interessante no teor da crítica de muitos é que o parâmetro que usam para construi-la é o das utopias, ideias abstratas, visões de um mundo perfeito, tal como destacou Edmund Burke em sua análise da Revolução Francesa. Dizem que quando Voltaire ouviu alguém dizer "a vida é dura", teria perguntado ao interlocutor, "em comparação com o que?". Assim se constrói a crítica marxista, sempre com base na promessa do novo mundo, na profecia da utopia irrealizável.

Diante dessa negação de valores e tradições tidas como "pruridos burgueses", desse apelo a certa conduta "científica" para analisar e resolver a problemática humana, o que resta ao materialista, depois de certo tempo, senão o desalento que Camus expressou quando disse que a única decisão que um homem deve tomar na vida é se deve ou não se matar.

Coloco aqui minha opinião - opinião, saliento - seguir essa linha de desprezo a outras tradições em prol de uma "desconstrução" , alegando que tudo se resume a um conflito de interesses entre classes, é limitar o pensamento. É seguir uma idéia velha como se nova fosse. É acreditar que seguindo um caminho já dantes percorrido, se possa chegar em outro lugar. Abraço.

Mário disse...

"de encontro" ao invés de "ao" encontro. Correção:3º parágrafo, 17ª linha.