domingo, 31 de agosto de 2008

Revista Psique Ciência & Vida


O nº 31 da revista Psique Ciência & Vida trouxe matérias muito interessantes, mas também cometeu alguns deslizes. A foto estampada na capa apresenta uma idéia equivocada da matéria corresponente, que trata de compulsão sexual. Caindo na vala comum do uso do corpo feminino para chamar a atenção de leitores - de forma tão desprezível quanto o fazem as campanhas publicitárias das cervejas brasileiras -, a mensagem da capa não traduz a riqueza do texto que trata do tema, pois dá a entender que a matéria abordará, apenas, a compulsão sexual feminina (como se essa fosse a única expressão do problema), quando, na realidade, estão em foco todas as dimensões da compulsão sexual, seja ela hetero ou homessexual. Gostei muito do texto, mas a escolha da capa foi imperdoável.
Outra matéria, assinada por uma psicanalista, é intitulada "A mulher moderna e seu dinheiro". Fazendo uma abordagem a partir da noção de pós-modernidade, amparada em Gilles Lipovetsky, o texto trata das conquistas femininas relacionadas à independência financeira como fruto do que chama de "revolução feminina", mas faz uma associação esdrúxula do ganho financeiro das mulheres com a prostituição, já que o dinheiro é um elemento do âmbito público, supostamente conquistado pelas mulheres através da prostituição. Abre aspas: "Mulher + Dinheiro + Âmbito Público = Prostituição". Fecha aspas. Conclusão da autora: A definição atual de mulher ainda insiste no fato de que mulher pública é sinônimo de prostituta. É o que chama de "fantasma da prostituição". Pelo amor de Deus!!! Com que base empírica ela foi fazer uma inferência dessa natureza? Hoje, no Brasil, 60% das mulheres são chefes de família, ou sejam, são as provedoras da vida doméstica e, em sua maioria, não contam com a presença masculina. Embora em alguns segmentos ainda haja disparidade entre os salários de mulheres e homens que desempenham a mesma função - o que legitima lutas pela igualdade de gênero em todo o mundo -, a mulher que trabalha, seja em emprego formal ou na informalidade, orgulha-se muito da sua independência financeira, que representa, em certa medida, a conquista da dependência emocional na relação afetiva, estreitamente ligada à condição do macho provedor. No ano passado, paguei a disciplina Métodos Quantitativos - Estatística, no Doutorado, na UFPE. O trabalho final solicitado era uma pesquisa de campo que aplicasse os métodos estudados. A equipe que participei resolveu tratar do trabalho informal nos arredores do campus da UFPE, no bairro Cidade Universitária, em Recife. Fizemos formulários e os aplicamos aos vendedores de comida, artesanato, livros usados, além de prestadores de serviços como conserto de celular, flanelinhas, etc. Foi umas das experiências mais ricas pelas quais já passei, em termos de pesquisa. Dividida a equipe por áreas, saí sozinha em busca dos meus entrevistados. Imaginava que as respostas aos quesitos do formulário seriam objetivas e sem profundidade, mas descobri uma grande necessidade de fala entre eles. Muitas das conversas demoraram mais de uma hora (foram várias tardes de trabalho). A maioria dos trabalhadores da informalidade são mulheres e algumas das entrevistadas chegaram às lágrimas ao tratar da importância daquela atividade informal para a sua vida pessoal, já que representa autonomia e independência. Não vi, entre as entrevistadas, qualquer sinal de culpa pelo trabalho ou, muito menos, pelo dinheiro ganho com sua atividade profissional. Saí dali com outro olhar sobre os vendedores e as vendedoras ambulantes e demais trabalhadores informais. Aquela pesquisa foi suficiente para que o sofrimento vivenciado na disciplina Estatística valesse a pena. A autora do texto em questão deveria ir a campo para ver de perto o tamanho do equívoco que ela cometeu ao tratar do "fantasma da prostituição".
Mas a matéria mais interessante é assinada pela jornalista Lúcia Rocha, de Maceió. Com o título "Limites: onde encontrá-los?", o texto aborda, com amparo na Psicanálise, como estabelecer os limites nas crianças, de modo a firmar inscrições subjetivas aptas a indicar o certo e o errado, o bom e o ruim, o bem e o mal. Contribuem para a matéria as psicanalistas alagoanas Taciana Mafra e Heliane Leitão, o psicanalista mineiro Messias Eustáquio Chaves e a socióloga Ruth Vasconcelos. A matéria aborda a lógica do sim e do não, a relação entre os pais, o bebê e a ética, a falha na escuta dos filhos, a questão da suposta culpa dos pais, os efeitos da ausência de limites e a relação entre a crise na família e a violência social. Em destaque, também, a relação entre adolescência e transgressões, a dor de viver diante das frustrações e o que ainda pode ser feito pelos jovens em conflito com a lei subjetiva. É uma leitura indispensável, que faz valer toda a revista.

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